A arte de bem viver na reforma

Parece mesmo ser uma arte. Para quem a vive e para quem lida com ela.

Existe aquela parte da vida que se chama de reforma. Como se fosse uma compensação por mais de 40 anos, na maior parte dos casos, de trabalho, de pagamentos, esforços feitos. E o espírito na base da aposentação, ou o que normalmente chamamos de reforma até é mais ou menos esse. Seja mais cedo para uns, ou mais tarde para outros, o que parece ser certo é que esta fase da vida dá o direito às pessoas de viverem em sossego, sem terem de se preocupar, uns menos que outros, com o seu rendimento. Estará garantido por essa tal quantidade de mais ou menos 4 décadas de descontos feitos, e pelo resto da sociedade que pretende ter também essa garantia, chegada a sua altura.

Mas também é certo que chegada a altura desse esperado prémio, muitas das pessoas acabam por ficar menos satisfeitas, algumas até mesmo deprimidas – o chamado “choque da entrada na reforma”. Porque será, visto que devia ser quase um prémio, pelo contributo dado duranta a “vida Ativa”, de tantas maneiras? Contribuiu-se não apenas com dinheiro, mas também com acompanhamento social e familiar, com resultados do trabalho. E no entanto, de um dia para o outro, parece que, em vez de se estar a apreciar um prémio, um merecimento, está-se, em alguns casos, a sentir-se quase o oposto, um “castigo”.

Podemos tentar ver isto de diversas partes. Primeiro, a sensação das férias perpétuas. E podemos fazer um exercício mental. Imaginemos se ou quando temos um mês de férias. Começam-se as férias com muita vontade, a apreciar todos os bocadinhos de passeio, de recreio, até de descanso. Mas ao fim de três semanas já se começa a estar aborrecido. Descansar demais também chateia, passear demais também cansa, e andar sempre a fazer “passatempos” acaba por começar a aborrecer. Quando chega a parte de terminarem as férias algumas pessoas até dizem que ainda bem que as férias estão a terminar. E isto começa cedo, eu lembro-me de estar a estudar cheio de vontade que começassem as férias e depois estar, no fim das férias, cheio de vontade que as aulas começassem. O mesmo passa para o trabalho, depois da fase de se ser estudante.

E sabe-se que as férias terminam, por isso essa sensação de aborrecimento acaba por não ser muito grave. Mas e se a sensação de férias for de… férias perpétuas? Como se lida com a mesma sensação? É que a aposentadoria, ou a reforma se lhe quisermos chamar assim, são isso mesmo. Umas férias.. perpétuas.

Perde-se o senso de responsabilidade de cumprir horários, e se isto para quem os tem de cumprir parece uma coisa boa, para quem já não os tem, numa grande parte dos casos, não parece, de todo.

Perde-se o sentido de utilidade, e aqui eu julgo que está o que mais deve ser trabalhado, pelos próprios, e por toda a comunidade. Se uma pessoas é chamada a dar opinião, a dar apoio e ajuda em assuntos técnicos, na sua comunidade social e laboral, porque depois de se reformar apenas parece ser importante para dar apoio familiar? E não é sempre. Quando uma pessoa deixa de se sentir útil, perde ela, e perdem todos ao seu redor. As qualidades de uma pessoa não se perdem com a entrada na reforma. Na verdade até julgo que é o oposto, as qualidades estão refinadas pela experiência e a disponibilidade agora é bem maior.

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Pena então perceber-se que se desperdiça tanto conhecimento, tanta experiência, a desenvolverem-se apenas programas de “passar o tempo”. Tratamos a reforma como umas férias, mas perpétuas, pois, e nem pensamos muito nisso. Isto já é melhor do que nada, do que o abandono total. Mas é muito pouco, tanto para as pessoas reformadas, como para as comunidades onde vivem. Podemos e devemos, todos enquanto sociedade, enquanto pessoas que se não estamos reformados esperamos vir a estar, saber como chamar este tão grande capital humano desperdiçado. Todos nós e cada um de nós!

Cada um de nós. É quando menos se deseja pensar nisto, quando se começa a chegar à idade de, passados poucos anos, se entrar na reforma, que as pessoas menos querem pensar nisso. O choque de nos sentirmos a ficar velhos, se calhar. A verdade é que é nessa idade que mais se devia pensar nisso. Preparar a reforma devia ser uma tarefa planeada. Mas não apenas cada um de nós, claro. Deve ser um trabalho individual e coletivo, sem ser um mais ou menos do que o outro. Lá está, ganha ou perde, cada um e todos ao mesmo tempo.

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E sem pensarmos naquela maneira redutora, que já é muito boa na ausência de melhor que, as pessoas mais velhas são boas contadoras de histórias. Claro que são, mas são muito mais do que isso. Contadores de histórias há muitos e de todas as idades.

Que tal se começarmos, enquanto comunidade a perguntar o que eles querem fazer em vez de lhes dizermos o que eles podem fazer? E quando formos nós, que tal nos prepararmos para saber o que vamos querer e poder fazer? Talvez fosse um bom princípio. E por algum lado se tem de começar!

Tiago Manuel

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